Há situações e situações na vida. Algumas nas quais espera-se que estejamos prontos para agir e outras que nos pegam de surpresa. E há aquelas em que mesmo toda a experiência parece ser insuficiente. O cenário de tragédia e horror que o município de Castelo do Piauí, a 185 Km de Teresina, viveu naquele 27 de maio de 2015 assustou até quem se preparou a vida inteira para agir com tranquilidade em situações mais extremas.
Demorou um tempo para entender o que de fato estava acontecendo. E à medida que os fatos iam se desenrolando, a gravidade de tudo se tornavam ainda maior e mais assustadora. Oito anos após quatro jovens serem violentadas, agredidas, torturadas e jogadas do alto do Morro do Garrote, o cenário de horror ainda se faz vivo na memória de quem estava ali para tentar controlar a situação.
E o controle, ele foi difícil. O subtenente Gomes, que à época era primeiro sargento e atuava na Companhia de Policiamento Militar de Castelo, conversou com a reportagem do Portalodia.com e relembrou o que viveu naquela noite tendo que lidar com o socorro às vítimas e conter os ânimos de uma população revoltada e disposta a fazer justiça com as próprias mãos. Ele define o momento como sendo o pior que já viveu em 33 anos de Polícia Militar.
“Tivemos muita dificuldade para conter a população. Quando a gente retornou para o local, estava lotado de gente e as pessoas estavam trazendo as vítimas nos braços. Para mim, foi o pior momento da minha vida como policial, porque a gente mora na cidade, trabalha ali e fica familiarizado com os parentes. Eu atuei por 20 anos em Castelo, cheguei lá quando elas eram crianças e as vi crescer. Aí a gente se depara com isso, os pais totalmente desesperados, pessoas que foram para a frente da delegacia tentar pegar os acusados. Teve um momento em que eu, como ser humano, pedi para que aquilo fosse só um pesadelo que ia passar”, relata o PM.
Antes da população tomar conhecimento do crime, Adão José de Sousa estava sendo procurado pela polícia de Castelo do Piauí por ser acusado de assaltar um posto de gasolina do município. Nas buscas, a polícia localizou, nas proximidades do Morro do Garrote, a motocicleta de uma das vítimas e decidiu levar o veículo para a delegacia.
No meio do trajeto para o Distrito Policial, a guarnição foi parada por um rapaz. “Ele viu a moto na viatura e perguntou onde a gente tinha encontrado. Disse que era da irmã dele e que ela estava sumida fazia algumas horas. Que ela havia ido até o morro para fazer umas fotos com umas amigas e que até então não tinha retornado. Nós imediatamente voltamos ao local e no meio do caminho cruzamos com a população desesperada correndo para lá para resgatar as meninas. Até então, a história é de que elas haviam sido sequestradas”, relembra o PM.
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No Morro do Garrote, a cena que se desenrolou diante dos olhos dos policiais era de puro horror. O subtenente recorda que uma ambulância chegou quase ao mesmo tempo em que a viatura. As jovens estavam bastante machucadas, despidas, sendo erguidas nos braços pelos populares.
“Conseguimos resgatar as vítimas e conduzir para o hospital. De imediato, tomamos conhecimento através delas de quem seriam os acusados. Fizemos várias diligências na cidade mesmo e conseguimos capturar dois deles ainda durante a noite”, relata o subtenente Gomes.
Bento Oliveira e Francisco Johny Gerônimo foram os primeiros a serem localizados. Na manhã seguinte, dia 28, Izaquiel Izaias foi apreendido e, pouco depois, Gleison Vieira da Silva. A polícia precisou levá-los para a Delegacia de Campo Maior, porque a de Castelo estava tomada de populares na porta, ateando fogo em pneus e ameaçando invadir para pegar os acusados.
O subtenente Gomes lembra que os policiais, à época, foram acusados pelos castelenses de estarem protegendo os adolescentes apreendidos. O militar diz que as forças de segurança estavam apenas cumprindo com o seu papel de garantir a ordem. “Pedimos para as pessoas terem calma porque nós daríamos a resposta. Na manhã seguinte os quatro adolescentes estavam apreendidos e dois dias depois o maior envolvido estava preso”, diz.
O subtenente Gomes ainda atuou na cidade até 2018. Para o PM, o episódio ficará para sempre marcado na história de Castelo do Piauí, muito embora a cidade tenha retomado sua rotina e tentado de maneira quase silenciosa conviver com isso.
“A gente se pergunta se poderia ter evitado essa tragédia”, diz juiz que atuou no caso
Quatro adolescentes apreendidos por crimes hediondos. Em toda sua carreira jurídica, o juiz Leonardo Brasileiro, que à época era titular da Comarca de Castelo, nunca tinha se deparado com uma situação tão angustiante. Ele foi o responsável por toda a instrução do processo contra Bento Oliveira, Izaquiel Izaias, Francisco Johny Gerônimo e Gleison Viera da Silva. Leonardo, que chegou a ouvir pessoalmente vítimas e acusados, disse que se pergunta se a situação poderia ter sido evitada.
É que dois dias antes do estupro coletivo, o magistrado havia expedido mandado de prisão contra Adão José de Sousa. O homem foi condenado por ser o mentor intelectual do crime contra as jovens e o juiz que conduziu o processo questiona se tamanha crueldade teria sido praticada caso ele tivesse sido preso antes.
“A gente é responsável por mandar prender e soltar. Temos o conhecimento nessa área criminal, mas vem uma angústia e uma tristeza muito grande. A gente se pergunta até como poderíamos ter evitado que isso acontecesse. Tinha um maior envolvido e eu já tinha decretado a prisão preventiva dele, mas ainda não tínhamos conseguido prendê-lo. Na hora, me veio essa pergunta: será que foi ele? Será que foi isso? Eu não consegui prendê-lo e ele fez isso?”, desabafa Leonardo.
Para o magistrado, o que mais chamou a atenção nos depoimentos foi a crueldade com que os crimes foram praticados e a ciência que os acusados tinham do que haviam feito. No entendimento de Leonardo Brasileiro, houve uma falha do Estado na garantia da integridade de todos os envolvidos, tanto vítimas, quanto acusados. Ele recorda que Gleison Vieira foi assassinado nas dependências do CEM enquanto estava sob tutela do poder público.
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O crime em Castelo do Piauí escancarou, segundo ele, as mazelas de um sistema ineficiente para reabilitar infratores. “Hoje esse sistema não tem a mínima condição de reabilitar ninguém. A ressocialização hoje é quase impossível dentro da estrutura que temos no sistema prisional e socioeducacional. Quem é criminoso se aperfeiçoa lá dentro e quem não é, se torna um”, desabafa o juiz.
Leonardo Brasileiro condenou os quatro adolescentes por quatro estupros, três tentativas de homicídio, um homicídio e lesão corporal grave. A sentença de três anos de medidas socioeducativas foi cumprida no CEM. Ao completarem a maioridade, os jovens foram postos em liberdade assistida, mas voltaram a recair no mundo do crime. Izaquiel e Bento retornaram para Castelo do Piauí onde, segundo a população, vivem até hoje na zona Rural do município.
Ambos possuem passagens pela polícia por crimes posteriores ao estupro coletivo. Bento chegou a ser preso em 2019 por tentar assaltar um comércio no bairro Promorar, em Teresina. E Izaquiel sofreu uma tentativa de homicídio no mesmo ano também no mesmo bairro. Segundo informou a polícia à época, o crime teria sido motivado por briga entre desafetos. Francisco Johny, segundo consta no sistema do Tribunal de Justiça do Piauí, possui apenas a ação do estupro praticado em Castelo em sua ficha criminal. Os acusados possuem hoje entre 24 e 26 anos.
A Adão José, o juiz determinou pena de 100 anos e 8 meses de prisão em regime fechado. Ele segue cumprindo a condenação na Penitenciária Irmão Guido, em Teresina.
O magistrado diz que é contra a redução da maioridade penal, mas ressalta que o prazo máximo de três anos de medidas socioeducativas deve ser repensado junto com o processo de ressocialização, sobretudo no caso de adolescentes. “É mais fácil reverter essa situação quando o infrator é um jovem, para que ele possa retornar ao convívio social. Nem sempre acontece, mas não podemos deixar de tentar”, finaliza.
Das três jovens vítimas do crime, duas vivem em Castelo e uma mora em Teresina, segundo informaram os moradores da cidade. Elas possuem, hoje, entre 24 e 26 anos.
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