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Quase 80% das mulheres assassinadas no Piauí eram negras

A violência permeia diariamente a vida de inúmeras de mulheres e meninas brasileiras, sendo ainda mais acentuada quando direcionamos o olhar para as mulheres negras. Historicamente, elas têm sido as principais vítimas da violência no Brasil. O Piauí não foge dessa cruel realidade: em 2021, quase 80% das mulheres assassinadas no estado eram negras, conforme revelado pelo Atlas da Violência 2023, divulgado nesta terça-feira (5).

De acordo com os dados, 68 mulheres foram vítimas de homicídio no Piauí em 2021. Dessas, 53 eram negras e 13 não negras, o que revela a disparidade racial presente nas estatísticas de violência letal no estado. Enquanto entre 2020 e 2021 a taxa de mulheres não negras assassinadas foi de 24%, a de mulheres negras foi de quase 30%. 

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No Piauí, quase 80% das mulheres assassinadas são negras

No cenário nacional, mais de 2.600 mulheres negras foram vítimas de homicídio em 2021. O número representa 67% do total de mulheres assassinadas naquele ano. Além disso, os dados apontam uma taxa de aproximadamente 4,3 mulheres negras mortas para cada 100 mil habitantes. Quando comparamos com a taxa de mulheres não negras assassinadas (2,4), o número sofre uma redução de quase 45%. 

Vale ressaltar que, em alguns estados, mulheres negras correm três vezes mais risco de serem assassinadas do que mulheres brancas, por exemplo. É o caso do Rio Grande do Norte, onde, em 2021, a taxa de homicídios de mulheres negras foi 4 vezes maior do que a de mulheres não negras. 

A professora Raquel Costa, Doutora em História Social e Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi), explica que para se analisar a letalidade de mulheres negras no Brasil, é preciso levar em consideração a interseccionalidade.

“Precisamos considerar questões como gênero, raça e classe. São elementos importantes para que a gente possa compreender por que as mulheres negras sofrem mais violência do que as mulheres não negras. Nesse sentido, é importante que possamos compreender de forma mais ampla a violência em seus vários formatos, como a violência doméstica, onde as mulheres negras sofrem dentro dos seus lares, e os demais tipos de violência sofrida por elas em vários espaços”, destaca a professora.

Raquel Costa lembra que as violências, sejam elas dentro ou fora do lar, nos espaços de trabalhos ou de lazer, são cotidianas na vida das mulheres pretas. E existem alguns fatores para isso. 

"O racismo, presente na estrutura social do Brasil e do Piauí, influencia e molda o funcionamento da sociedade. A herança escravista contribui para estereótipos prejudiciais sobre as mulheres negras, desde a figura da mãe preta destinada ao serviço até a objetificação sexual. Esses estereótipos diminuem a mulher preta, impactando suas posições no trabalho, onde as mulheres negras enfrentam altos índices de desemprego, salários baixos e são maioria entre os empreendedores informais. Essa realidade perpetua um ciclo de pobreza e violência”.

Raquel CostaDoutora em História Social

Além disso, o racismo institucional dificulta o acesso das mulheres negras aos serviços de proteção. “Muitas mulheres, antes de serem violentadas ou mortas, tentaram por várias vezes acessar o serviço de proteção, mas acabam não sendo ouvidas ou tratadas de maneira correta. Isso evidencia a ligação dessa violência com a falta de segurança pública”, acrescenta Raquel Costa. 

Marcello Casal/Agência Brasil
Mulheres negras correm três vezes mais risco de serem assassinadas

Para mitigar esse problema, é urgente repensar as políticas públicas que abordem a violência contra as mulheres, transformando-as em políticas de Estado duradouras. Estas devem focar na prevenção, segurança para denúncias e proteção. É crucial investir ainda em políticas educacionais que promovam o letramento racial e desmistifiquem o machismo e o conservadorismo. 

Políticas afirmativas e de reparação, como programas de auxílio e capacitação profissional, são necessárias, especialmente para mães solteiras. Também é vital abordar a solidão das mulheres negras, proporcionando creches para facilitar seu acesso à educação e formação. Essas iniciativas são essenciais para combater a violência enraizada em uma sociedade racista, machista e conservadora

Em uma década, mais de 49 mil mulheres foram assassinadas no Brasil

A violência de gênero no Brasil vem expressando números cada vez mais significativos. Entre 2011 e 2021, mais de 49 mil mulheres foram assassinadas. 

Registros oficiais do Ministério da Saúde apontam que, em 2021, mais de 3.800 mulheres foram mortas no Brasil. No entanto, o Atlas da Violência estima que o número absoluto de mortes tenha sido de 4.603; ou seja, outras 745 mulheres sofreram agressões fatais sem que o Estado tivesse conseguido registrar corretamente as causas dessas mortes. 

Fernando Frazão/Agência Brasil
Entre 2011 e 2021, mais de 49 mil mulheres foram assassinadas no Brasil

Já no período pandêmico mais intenso, entre 2020 e 2021, 7.691 vidas femininas foram perdidas no país. No Atlas da Violência, os pesquisadores apontam que existem três hipóteses para o aumento da violência contra as mulheres nos últimos anos.

1 - Redução de orçamento para políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres

Segundo o levantamento, a proposta orçamentária do governo Bolsonaro (2019 - 2022) reduziu em 94% o orçamento para as políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres, que contemplam várias ações importantes para a prevenção da violência, como oferta de serviços especializados no atendimento às mulheres em situação de violência, ações de incentivo a autonomia das mulheres, além da construção de Centros de Atendimento à Mulher. 

2 - Radicalismo político

O retorno mais intenso do conservadorismo na sociedade brasileira ajudou a reforçar os valores do patriarcado. É o que aponta o Atlas da Violência. Conforme o estudo, o conservadorismo pode ter contribuído para impulsionar os atritos e a violência de gênero contra mulheres na sociedade. 

3 - Pandemia da Covid-19

O período de pandemia vivenciado no Brasil e no mundo pode ter tido um efeito na dinamização da violência contra as mulheres se levarmos em consideração: 

O isolamento social, ao mesmo tempo em que prejudicou o funcionamento dos serviços de proteção às mulheres, pode ter contribuído para aumentar a violência no lar, não apenas pelos conflitos domésticos, em um cenário de maior convivência entre os cônjuges, mas pelo menor controle social da violência eventualmente perpetrada.

Quase 90% das pessoas assassinadas no Piauí são negras

“A carne mais barata do mercado é a carne negra”, disse Elza Soares em uma das músicas mais icônicas da cultura brasileira. A letra retrata a dura realidade vivida pela população negra no Brasil: uma comunidade marginalizada em sua grande maioria e que sofre violências em todas as suas dimensões, seja ela simbólica, psicológica, moral ou física. 

De acordo com o Atlas da Violência, em 2021, o Brasil registrou 36.922 assassinatos de pessoas negras (pretas e pardas), representando 77,1% das vítimas.

Reprodução
Gráfico mostra a taxa de homicídios de negros e de não negros

No Piauí, a pesquisa apontou que cerca de 90% dos homicídios foram de indivíduos negros, totalizando 664 casos, em contraste com 79 não negros. 

Essa violência, intrinsecamente ligada ao racismo estrutural, manifesta-se em agressões contra mulheres, jovens e toda a comunidade negra.