Neste 19 de outubro se comemora o Dia do Piauí. A data lembra o dia em que a Câmara da Vila de São João da Parnaíba, hoje município de Parnaíba, proclamou sua emancipação em relação a Portugal, marcando a adesão do Piauí à independência do Brasil. Mas por mais que se trate de uma data cívica, as comemorações vão além disso. O 19 de outubro no Piauí é também o momento de reviver e, acima de tudo, celebrar a figura do piauiense. Aquele piauiense aguerrido, que bateu no peito com orgulho e disse “não” à imposição do domínio português, escrevendo os rumos da própria história.
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Esta história escrita pelo piauiense se mostra uma verdadeira tapeçaria cultural pela qual desfilam manifestações folclóricas e tradições populares que ecoam em histórias de resistência e fé. Aos 202 anos, o Piauí mantém vivos seus costumes e valores por meio de representações artísticas que são verdadeiros registros históricos e sociais. Registros estes transmitidos oralmente e reinventados ao longo do tempo.
As danças, músicas, festas religiosas e lendas piauienses fazem parte de um patrimônio imaterial que revela muito da alma de seu povo. Quem nunca assistiu ou dançou uma quadrilha numa festa de São João? Quem nunca acompanhou nas palmas a batida potente dos tambores do Bumba Meu Boi? Estes são só alguns exemplos de celebrações da cultura piauiense que carregam elementos de sua ancestralidade e compõem um verdadeiro mosaico cultural.
Como explica o historiador e antropólogo Vagner Ribeiro, cada manifestação cultural destas contribui para que o Piauí pense sua própria identidade, renasça e se reinvente. “O Piauí tem uma característica, eu diria, de diversidade que a gente não pode esquecer. Do mesmo jeito, não podemos ficar querendo encaixar uma identidade específica. Quando você diz ‘ah, na Bahia é o axé. No Pernambuco é o frevo. E no Piauí?’ Se você quiser, por exemplo, dizer que no Piauí temos o reisado como identidade cultural, eu concordo. Mas não é só isso. É uma boa referência para a nossa identidade, mas não a única, porque a identidade cultural é plural e eu acredito mais nessa pluralidade”, afirma.
O reisado é a brincadeira entre o profano e o sagrado
O próprio reisado é uma manifestação artística que reflete bastante esta pluralidade cultural do Piauí. Com raízes no catolicismo popular, ele remonta às tradições trazidas pelos colonizadores portugueses. Celebrado entre o Natal e o Dia de Reis, comemorado em 6 de janeiro, a festa de Reis envolve música, dança, teatro e canto. No reisado piauiense os grupos, chamados de ternos ou bandas, percorrem as ruas das comunidades, cantando e dançando em homenagem aos Três Reis Magos que visitaram o Menino Jesus quando de seu nascimento. No repertório, músicas africanas, indígenas, portuguesas. Na composição instrumental, zabumbas, pandeiros e sanfonas. Nas vestimentas, trajes coloridos e máscaras. A festa é uma brincadeira e reúne personagens que são, em realidade, a dualidade entre o religioso e o profano, como o é o ser humano.
O reisado é uma verdadeira coreografia de símbolos e elementos culturais dentre os quais se destacam, por exemplo, os Caretas, vestidos de palha de carnaúba e que são personagens que tanto cantam na hora de se apresentar, como cortejam os participantes para envolvê-los na brincadeira com uma linguagem poética em versos cantados e parlendas. Há ainda o Boi, a Burrinha e o Jaraguá. O Boi entra na dança, a Burrinha representa o carinho no cortejo com o público e o Jaraguá é o personagem mais “assustador” do reisado que faz do “medo” uma brincadeira.
Em algumas regiões piauienses, o reisado conta ainda com a Ema e a Piaba. Esta última, explica Vagner Ribeiro, está mais presente na região do Boquinha, na zona Rural de Teresina. “A Piaba do reisado é tipo um boi, brilhosa e que tem a ver com o rio Poti. Aquela ligação com a água, com o sol forte nosso que bate na água e espelha aquela sensação de prata, de brilho. A Piaba é a influência da natureza nas manifestações culturais do Piauí”, diz.
Para Vagner Ribeiro, o reisado é uma boa referência para a identidade do piauiense por conta justamente de sua pluralidade. A variedade de ritmos como o xote, o baião; a variedade de personagens, que vão desde animais à personificação de figuras religiosas, tudo isto, segundo o antropólogo, deixa margem para a criação. E criar é a raiz das manifestações folclóricas.
“O reisado tem uma coisa mística que é a capacidade de ser sagrado e ao mesmo tempo ser profano. É exatamente como o ser humano. Quando ele é profano, ele não desrespeita o sagrado. Ele aceita e respeita. O mesmo Careta que brinca e dança um baião é o que canta um bendito e na hora fica contrito, coerente com aquele ambiente de espiritualidade. Na hora da brincadeira ele se espraia, se joga, se manifesta por inteiro como ser humano frágil. Chora. É exatamente como a humanidade. No reisado nós temos uma brincadeira que permite a nós piauienses sermos nós mesmos e não só personagens enfeitados”, finaliza Vagner Ribeiro.
Bumba Meu Boi e a brincadeira com personagens reais
Uma mulher grávida desejou comer língua de boi e o que aconteceu depois daí acabou se tornando uma das mais conhecidas manifestações culturais do Brasil, especialmente no Norte e Nordeste. Mas afinal, o Boi é piauiense, pernambucano, maranhense ou amazonense? A despeito da “briga pela patente”, algo que não se pode negar é a pluralidade deste personagem, rico em questões sociais, religiosas e símbolo de resistência cultural e celebração da comunidade.
A história central do Bumba Meu Boi gira em torno de personagens tipicamente nordestinos e que são a cara do piauiense. O Amo, dono do Boi, a Catirina, mulher grávida que deseja comer a língua do boi, o vaqueiro Pai Chico, que mata o boi para satisfazer o desejo da esposa, e os curandeiros que tentam ressuscitar o boi. Em um espetáculo repleto de música, dança e teatralidade, a história do Bumba Meu Boi é contada em um tom cômico e dramático.
No Piauí existem vários “bois”. Mas a palavra, nesse caso, se refere aos grupos de brincantes que se reúnem para contar a lenda, cada um acrescentando elementos próprios e enriquecendo a história à sua maneira. Um dos grupos mais tradicionais do Estado está situado em Teresina: é o Bumba Meu Boi Imperador. Fundado no bairro Piçarra em 1934 por Dona Eva, Sr. Raimundo Cambota e Antônio Araújo, o Bumba Meu Boi Imperador da Ilha é o exemplo de que a cultura piauiense não se perde com o passar do tempo.
Raimundo Araújo, mestre do grupo, tem 78 anos e desde os 12 “brinca com o boi”. Ele afirma que “o boi é pra quem gosta” e que é uma cultura que precisa ser respeitada e tratada bem pela comunidade e pelos governantes porque “é a cara do Piauí”, a começar pelos seus personagens.
“O Nego Chico [Pai Chico] é vaqueiro e representa a cultura piauiense da vaquejada. Aqui no Imperador da Ilha temos os caboclos guerreiros e os caboclos reais que representam os indígenas. E os cantos que entoamos são todos feitos com base naquilo que a gente vive e vê, na nossa realidade, naquilo que a gente entende que faz parte da história do Piauí e da nossa história”, explica sr. Raimundo.
O mestre do Bumba Meu Boi Impera- dor lembra que brincar com o boi é também um ato de respeito com a história do Piauí e que procura passar os ensinamentos que recebeu de seus antepassados aos filhos e netos para que sua cultura não se perca com o tempo. Hoje, o Bumba Meu Boi Imperador conta com 24 crianças, a grande maioria netos de Raimundo, e este ano saiu com 70 integrantes nas festas de São João. Para ele, é por meio das toadas e da dança que a história do Estado é passada para frente.
“Eu digo sempre que se for para fazer, tem que fazer bem feito. Tem que ter os trajes arrumados, tem que seguir direitinho os passos, porque isso aqui é uma brincadeira, mas é uma brincadeira que conta muito daquilo que a gente é. A gente quer ser conhecido pela nossa alegria e pela nossa cultura, não é? Então a gente tem que transmitir isso com seriedade. É a nossa riqueza, temos que tratar bem. O Bumba Meu Boi pra mim é mais do que história. É compromisso”, finaliza o mestre.
Cultura popular do Piauí é um patrimônio vivo
O maior patrimônio do Piauí são as pessoas que fazem o Estado. E enquanto pessoas com relações sociais e uma história para contar, acabam criando cultura. É difícil precisar a origem da cultura piauiense. O antropólogo Vagner Ribeiro, por exemplo, prefere usar o termo "andança”. A cultura, segundo ele, “caminha entre a várias regiões do Estado, transmuta justamente porque é feita por sua gente”.
O Bumba Meu Boi e o Reisado são apenas alguns exemplos da cultura feita pelas pessoas para as pessoas. A nível de Piauí, há projetos para reconhecer estas manifestações culturais como patrimônios vivos estaduais. Quem explica é a secretária de Cultura do Piauí, Ingrid Silva. “O patrimônio vivo fomenta e reconhece ainda em vida esses patrimônios culturais. Existe uma lei que foi recentemente regulamentada e que reconhece e proporciona uma bolsa para estes patrimônios vivos. Eles tanto podem ser pessoas físicas como pessoas jurídicas. Temos atualmente pouco mais de 60 patrimônios vivos que recebem mensalmente essa bolsa no Piauí”, diz.
Pessoas físicas reconhecidas como patrimônios vivos recebem bolsa de um salário mínimo enquanto que as pessoas jurídicas recebem dois salários mínimos. O projeto já é uma referência nacional e sua replicação tem sido estudada por outros estados brasileiros.
Para fomentar a cultura no Piauí e manter vivas tradições que são parte da história do Estado existe ainda o Sistema Estadual de Cultura Piauiense, o SIEC. Anualmente, o SIEC tem um edital com um montante aproximado de R$ 12 milhões a R$ 13 milhões dos quais boa parte vai para a cultura popular. Projetos como o Bumba Meu Boi e o Reisado contam ainda com o apoio de Leis Federais Culturais para fomentar suas manifestações.
“Executamos ano passado a Lei Paulo Gustavo onde tivemos um edital específico para a cultura popular. Foram mais de R$ 3 milhões especificamente para os bois e o artesanato. Então toda a cadeia que desenvolve uma cultura popular tradicional foi beneficiada. Para manter a história do nosso Estado viva, nós entendemos que é necessário ter um edital exclusivo para as manifestações populares”, pontua a secretária Ingrid Silva.
A gestora da Secretaria de Cultura prevê ainda a execução de mais de R$ 30 milhões para o fomento direto à cultura no Piauí ainda este ano com o lançamento da política nacional Aldir Blanc. O projeto é ter um edital específico voltado para os povos tradicionais e a chamada cultura tradicional do Estado como as quadrilhas, o Reisado e os Bois. Isso inclui a realização de festivais tradicionais.
História passa para gerações, mas precisa ser contada
A oralidade é a mãe da memória, dizem. É através da fala que as histórias se contam, recontam e ecoam. Mas de nada adianta se a história falada não é ouvida. Um dos maiores desafios para manter vivas tradições culturais e ancestrais é o diálogo com as gerações futuras. Mas a questão é: como transmitir a história falada para quem vive em um mundo cada vez menos físico e cada vez mais virtual?
A resposta está na Educação e o Piauí se propôs ao desafio. Para garantir que manifestações culturais imateriais não se percam com o tempo, elas serão levadas para dentro das escolas por meio da Educação Patrimonial. O projeto prevê ensinar os alunos da rede pública estadual sobre os patrimônios imateriais do Piauí em todas suas manifestações, incluindo o Reisado, o Bumba Meu Boi e as já tão conhecidas quadrilhas juninas.
“São cursos que falam sobre a cultura popular piauiense e que alinham a história do nosso Estado com a pedagogia do ensino para que a essência cultural não se perca em meio a tantas informações e a um mundo tão virtualizado. Queremos fazer a ponte entre aquilo que as gerações anteriores nos ensinaram e as gerações que virão, porque, afinal de contas, elas um dia também farão história. A história que vai ser falada e manifestada. Manifestada na dança, nos ritmos e nas cores. O Piauí é: uma cadeia rica de multiculturalismo", finaliza Ingrid Silva.
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